29.6.17

Vinagre e azeite

A solidão pelas razões erradas avinagra a alma,
a solidão pelas razões certas lubrifica-a.

Que frágeis que somos, entre os raros momentos bons.

Indo e vindo incompletos,
intrigados com o destino,

como o relevo inacabado
de um burro caído, por cima de uma porta de igreja na Finlândia.


Vineger and oil

Wrong solitude vinegars the soul,
right solitude oils it.

How fragile we are, between the few good moments.

Coming and going unfinished,
puzzled by fate,

like the half-carved relief
of a fallen donkey, above a church door in Finland.

Jane Hirshfield


a mulher do casaco vermelho, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Colecção Poetas da Eufeme, Edições de Sérgio Ninguém (Eufeme), Julho de 2017



28.6.17

da flatulência

o peido feito ameaça,
o peido que não se deu,
o peido como chalaça,
um motejo, um ar de graça,
agastou, mas não fedeu.

envolto pela canção,
o peido apenas foi
um peido proclamação,
um peido com ovação;
um peido assim como sói

dizer-se do peido mestre?
não soltou ventosidade,
não foi um traque pedestre,
nem foi um peido equestre,
foi um peido de vaidade.

mas se houve quem pegou
no peido que não fedeu
e contra o peido clamou,
praguejou, se abespinhou
e fez um grande escarcéu,

que faria se o cheirasse,
se fosse um peido real,
um peido que tresandasse
e o seu pivete chegasse
para empestar Portugal.


© Domingos da Mota

22.6.17

CENTRAL DA PRAÇA DAS FLORES

Falava de incêndios e de lugares
perdidos, dessas trovoadas
que só acontecem na infância
e nos perseguem depois
uma vida inteira. Estamos
em Julho, nunca fez tanto calor.

Não, corrige Benilde,
"Estamos num velório,
andam aí as moscas, a dançar".
Nesta taberna, volto a perceber,
o poeta fica por detrás do balcão
e oferece-me num largo sorriso
cansadas, certeiras palavras:

"Sou um ser vivo e humano.
Até os vermes são vivos".
-- Que lhes aproveite, Dona
Benilde, a nossa morte,
estas tardes que prefiro a tudo

e a sombra, o manso prodígio da sombra.

Manuel de Freitas

A FLOR DOS TERRAMOTOS, Averno, Lisboa, 2005

12.6.17

indirecto livre

um romance é que era!...
dizem-me olhando de lado
os poemas 
longos
magros
enguias pensantes
agarradas ao papel
do centro de reabilitação

um romance é que era
com acção tempo
uma casa inteira
da raiz quadrada 
ao tecto
corredores a dar
para personagens
ténues
não totalmente
apatetadas
(sepultemos realismo
experimentalismo
e deus nos livre
do pós-colonialismo)

um romance é que faz
virar as cabeças na rua
calça mesas
duplica escaparates
expande a crítica
constipada
no seu casulo refinado

agora a conveniente
pausa descritiva
logo seguida
de autoconsciência
referencial
à guitarra e à viola

um romance é que era!...
sobrancelha arqueada
entre a cobiça e a paráfrase

Rosa Oliveira

tardio, Edições Tinta-da-china, Lda., Março de 2017

1.6.17

LUGAR EM BRANCO

Eu posso abrir aqui uma simples cratera.
Basta soprar o ar, estender braços e pernas,
dizer que sim ao corpo
e não enlouquecer.

É um lugar em branco, afundado no mundo.
A luz que o ilumina ele próprio
há-de gerá-la.
Por mais negra que seja será dele.

Então a vida vibra.
Os animais virão com músculos e raízes.
O reino vegetal trará as suas crias.
E a mão dura do sol será um bago de uva.

Uma simples cratera,
um poiso para os deuses, um riso sem paredes,
branquíssimo lugar,
uma pedra, um pão, uma só palavra.

Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR, Assírio & Alvim, Julho de 2015