21.9.15

CARTA A ADONIS, POETA SÍRIO-LIBANÊS

7.

Adonis: são remos os ciprestes?
            Ou os pulmões de um louco?
O "barbeiro" que me içou a vela
             no mastro das dores,
e me encheu a boca
de forragem destinada a animais,
não voltou a aparecer. Mas é
diabo a quem devo, tatuado
              no sangue,
o genoma
destes versos de Hakim Sanai:
«Toda a existência é simplesmente 
               o vento a teu favor!»

António Cabrita

COMBATE DE FLAUTAS, & etc, Lisboa, Setembro de 2003

17.9.15

GÉNESE

Sozinho, à margem do caminho, um verme.
Passam, repassam bandos pela estrada.
E alguns vão vê-lo... ou antes: vêm ver-me,
Com um dó que dói como uma chicotada!

Passam, repassam bandos pela estrada...
Levantam pó que desce a envolver-me.
E outros, por animarem a jornada,
Jogam à bola com minh'alma inerme.

Passam. E à margem do caminho, triste,
Respiro o pó que inda no ar persiste...
Cai das estrelas o silêncio, o espanto.

Qualquer coisa de absurdo me sufoca.
Maior do que eu, sobe-me a alma à boca.
Falta-me o ar, incho de angústia... - E canto.

José Régio

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras Editores, S. A., 1999

13.9.15

CARDIOGRAFIA

Para vos ver amigos
hoje ponho as minhas lentes
verde húmido de lágrima
hoje sois belos verticais mesmo gregos
vossas boas acções enumero
por límpidos dedos de água.

A raiva de muito vos querer
meu jasmim refractário foi
mas hoje que me suicido por vós
com a cálida tinta vos pinto
do meu terno olho de boi.

Natália Correia

O VINHO E A LIRA, Edição Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa

6.9.15

O Monólogo do Merceeiro

XXVI



Livro dos fiados é arte


              o derradeiro


acha-se numa sacristia
à guarda das sombras


de Deus
e das moscas.


Ivo Machado


O MONÓLOGO DO MERCEEIRO, Insubmisso Rumor, Porto, setembro de 2015

3.9.15

Aylan Kurdi

Arrastado na fuga para a vala
Comum que aprofunda a crueldade,
Foragido da guerra ou de uma bala
Perdida nos confins da iniquidade,
Ao dar à costa, depois do naufrágio,
O corpo exangue do menino morto
Agravou a ferida do presságio
De que a esperança pode ser um porto
De desabrigo, de pavor, de medo,
De quem sendo novíssimo tem cedo
O caminho das pedras tão hostil
Ou das águas sem pé de um mar revolto,
Mar encrespado convertido em esgoto
De perdição e de cinismo vil.


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Edição Busílis, Dezembro 2018