31.10.12

Carlos Drummond de Andrade

RESÍDUO


De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures,
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefactos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vómito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espectáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

60 Anos de Poesia, Antologia organizada e apresentada por Arnaldo Saraiva, Edições «O Jornal», Lisboa, Março 1985

26.10.12

Sozinho em casa, com a tarde a anoitecer
entram-me na ensonada, enfermiça audição
os desvairados sons da cidade -
sirenes diversas em tumultos distantes.

Sirenes diversas
confusas
vagas, no rodopio das suas aflições indefinidas,
a percorrer as distâncias, as chuvosas curvas abertas
das cinturas internas.

As curvas abertas, distantes,
da cidade que anoitece.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

A Casa da Meia Distância, Mariposa Azual, Lisboa, Janeiro 2010

21.10.12

OS TEMPOS NÃO

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se demais nestes tempos (inclusivé   cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço   no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se demais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo demais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que todos temos a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Manuel António Pina

AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE, A Erva Daninha, SCRL, 2.ª edição, Porto, 1982

19.10.12

Manuel António Pina [1943-2012]

Completas


A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Manuel António Pina

POESIA, SAUDADE DA PROSA uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

14.10.12

[Que os rituais podem ser mortíferos, mesmo entre cristãos]

Que os rituais podem ser mortíferos, mesmo entre cristãos,
Eis o que nos mostra uma triste nova vinda da África do Sul.
Durante um baptismo num rio da Suazilândia,

Um jovem negro afogou-se. Ainda a oração
Do padre não tinha chegado ao fim, já a corrente o arrastava
Rio abaixo, por entre rochas pontiagudas. Os fiéis

Perderam-no de vista em segundos. A cabeça,
Como um melão, foi levada para o centro, afundando-se depois
Num turbilhão mais forte. Metade cristão,

Metade ainda pagão, desapareceu entre as duas margens,
Nas ondas turvas, até receber agonizante
O sacramento do crocodilo.

Durs Grünbein

Aos Queridos Mortos, Tradução e posfácio de Fernando Matos Oliveira, Angelus Novus, Coimbra, 2003

9.10.12

O tempo

O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques e lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos

insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação

A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas

José Tolentino Mendonça

ESTAÇÃO CENTRAL, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 2012

7.10.12

IMITAÇÃO DE OVÍDIO

II


mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?

deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)

(...)

Alberto Pimenta

IMITAÇÃO DE OVÍDIO, & etc, 2006

5.10.12

ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

2.10.12

Jorge Fazenda Lourenço

20020607 (a Eugénio de Andrade)


Deve ser o fim - os melhores
Fizeram-se já ao caminho,
Luminoso para eles, para nós,
Os vivos, obscuro, sem perdão.

Hoje, os únicos em festa
São o corvo e o abutre.

Levai-me, espíritos ligeiros,
Partir desejo, o canto
Suspenso é só do vento

Um sopro vão de luz
Um corpo em setembro
O cardo e a malvasia
Na cinza das nossas vozes.

Jorge Fazenda Lourenço

Cutucando a musa com verso longo e curto e outras coisas leves e pesadas, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Novembro de 2009