28.3.15

ABRIL E O SILÊNCIO

A primavera mostra-se  deserta.
A valeta, de um escuro aveludado,
rasteja ao meu lado
sem reflexos.

A única coisa que brilha
é o amarelo de flores.

Sou levado na minha sombra
como um violino
no seu estojo negro.

O que quero dizer
tremeluz fora do meu alcance
como prata
em montra de casa de penhores.

Tomas Tranströmer

50 Poemas, Tradução do sueco e nota introdutória de Alexandre Pastor, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Julho de 2012

24.3.15

Herberto Helder (1930-2015)

Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.

Herberto Helder

DO MUNDO, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro de 1994

23.3.15

Com ou sem fé

Mesmo sem fé o coração se deita
a sondar o além, o que há-de vir
na época precisa da colheita
ou atrás do acaso que surgir
numa curva apertada, mais estreita,
que o apanhe e arraste sem tugir
nem mugir contra a sorte, se desfeita
for a sorte que possa possuir.
Com ou sem fé o coração descobre
que por muito que tente e se desdobre
a sondar, conhecer, ir mais além,
que nunca abarcará o infinito,
e mesmo que procure o inaudito,
ficará certamente muito aquém.

© Domingos da Mota


16.3.15

POEMA LIMO

De não ser deus nem bicho
nem sossego de pedra
de refectido lixo
faz-se o homem poeta

se de algo se de alga
a origem lhe é incerta
se bruscamente breve
qual círculo na água
o homem para que serve?

Natália Correia

O VINHO E A LIRA, Edição de Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa, 1970

10.3.15

RELÂMPAGO

Não me orgulho de nada:
O mundo foi severo.
A conta, após contada:
Zero.

Anda à volta de mim
Quem não sabe quem sou.
Eu fui-me sempre assim.
Ou...?

Vejo os outros que passam
Pobres de ser alguém.
Inúteis, ameaçam
Quem?

Um nome vale um ano,
Ou apenas um mês.
Há-de descer o pano
Sem me chegar a vez.

                                          (2004)

António Manuel Couto Viana

RESTOS DE QUASE NADA E OUTRAS POESIAS, Averno, Lisboa, Janeiro 2006

1.3.15

Canção Final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Carlos Drummond de Andrade

[Revista Bula]