29.4.24

Os outros

Como falar dos outros sem falar de nós,
nós que somos os outros para outros
e como eles tantas vezes só
em busca de um lugar que nos acoite?

© Domingos da Mota

28.4.24

recado para paulo silenciário

o que diria apolo
do insecto assim votivo
e mudo?
história, se a há, é do inexacto,
do regresso impossível aos silêncios
da quente vizinhança;
e talvez seja
irrespirável a beleza:
a cigarra de eunomo ao atalhar
com seu murmúrio doce
a corda que na cítara partira.
a cigarra de bronze repetiu-a?

Vasco Graça Moura


Os Rostos Comunicantes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984

26.4.24

AVENIDA DA LIBERDADE

Embora nunca tenha descido
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
segurando um cartaz que
só os cegos conseguem ler
gritando palavras de ordem
que só os surdos conseguem ouvir
Embora nunca tenha descido
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
ou é a avenida que desce em mim
ou a liberdade que desce a avenida
que há em mim
Continuarei a descer a pé
todos os anos
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
mesmo que não haja avenida
mesmo que eu já não esteja
nesta vida


Jorge Sousa Braga

in https://facebook.com/jorge.s.braga - 25 de Abril de 2024

23.4.24

ABRIL - OPUS 25

O dia preservado na memória,
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,

está de braços abertos ao futuro
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo que o ameaça).

A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo -
sem mordaças.

Fevereiro de 2024 (inédito)

(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)

Domingos da Mota

SEMPRE - poemas para assinalar os cinquenta anos do 25 de Abril, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Edições Afrontamento, Lda., Abril de dois mil e vinte e quatro.

20.4.24

NUMA FRONTE AUSENTE



Terra e noite,
as mãos escavam.
Insistem e desfazem-se
numa fronte ausente.

Na cabeça subsistem
algumas palavras inúteis.

A mão devagar traça
     - vai traçar -
uma rede de sinais de que dependo.
A luz descobre o corpo.

Algumas palavras a mais desaparecem.
Neste instante
a pedra é nua.

António Ramos Rosa


A MÃO DE ÁGUA E A MÃO DE FOGO, Antologia Poética, Selecção e Organização de António Ramos Rosa, Posfácio de Maria Irene Ramalho Sousa Santos, «Fora de Texto», Coop. Editorial de Coimbra, CRL, Coimbra, 1987

16.4.24

Moscas

As moscas mudam, e o mau cheiro é tanto
que tresanda a mil léguas de distância:
se o risco de fedor não causa espanto,
olhando a ambição, vendo a arrogância
das moscas que voltejam em redor
do pote e do poder, fica a noção
de ser a impostura, sem pudor,
o germe da falaz propagação.
As moscas vão mudando e a picardia
contamina o ar que se respira
e alimenta bem mais do que soía
a ameaça diária que transpira
por sob o fingimento, cuja insídia
respalda a avidez da moscaria.


© Domingos da Mota

9.4.24

VAN GOGH

Devora-me a sede de infinito.
Que vou fazer? Como resolvê-la?
Decido: saio para a noite e fito
o espaço nu, a luz duma estrela.

Eugénio Lisboa

O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Março de 2001

8.4.24

2.

Alivia o trabalho,
aligeira as palavras.
De quando em vez
dá-lhes sol e água.

Julgas-te para durar?

Ninguém ganha a vida
senão gastando
o que dela sobra.

O mais que fica
são passados em catadupa
sem nome nem morada.

Henrique Manuel Bento Fialho


De Má Condição, Pinturas: Maria João Lopes Fernandes, Composição: Pedro Serpa, Março de 2024:59

4.4.24

POETA JÁ NÃO SOU

Poeta já não sou, se um dia o fui.
Tornei-me opaco, agreste, perdi norte.
O verbo estaca. Mexe, mas não flui
Como fluía dantes, nédio e forte.

Eu sei que não devia assim queixar-me.
O tempo vai e volta, e acaso um dia,
Buscando devaneio e algum charme,
O verbo ganhe frémito e folia.

É isto: tão queridos, sem vergonha,
Os poetas mentem, troçam, manipulam,
Não há lei que bom senso lhes imponha.

Prometo não voltar a inquietar-vos.
E enquanto o sangue e a linfa em mim circulam,
Impedirei que façam de vós parvos.


Fernando Venâncio

(colhido, com a devida autorização, na sua página do Facebook)

31.3.24

[Cerejeiras em flor]

Cerejeiras em flor -
E no entanto
Sofrimento e corrupção


Issa Kobayashi

PRIMEIRA NEVE [haikus], versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2002

23.3.24

Pegada de carbono

Sei que não hão de restar
sequer os dentes
nas cinzas do futuro.

Talvez este poema
faça eco
num beco sem saída.

Nem todos os fantasmas
são entidades translúcidas.
Alguns são antes de tudo
a matéria escura da linguagem.


Nuno F. Silva


Sol Subterrâneo, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2024

17.3.24

FRAGMENTOS

1

Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, e dura, te pode atingir.

2

Algo de visível perpassa
nos limites do ser.

3

De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.

4

Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.

5

(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim...)

6

O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.

7

No último fragmento, fixa
o efémero, e repousa.


Nuno Júdice


50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Março de 2022